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domingo, 29 de janeiro de 2012

Os Desvalidos


Terminei de ler As Esganadas, do Jô. O livro traz o estilo que consagrou o autor, neste segmento, misturando ficção com personagens históricos. O pano de fundo onde é ambientado é o Rio de Janeiro de 1938, início do Estado Novo, com o governo de Getulio Vargas. Uma leitura agradável e, de certa forma, instrutiva, pois nos mostra vários aspectos do Rio na década de 30, do que acontecia na política aos acontecimentos da Vila Mimosa (histórico ponto de prostituição ainda existente).
                        Percebe-se nos créditos que foi feito um excelente trabalho de pesquisa sobre a época e os seus acontecimentos. Ironicamente, ainda quando estava envolvido na leitura, alguns acontecimentos do Rio atual me chamaram a atenção pela semelhança com o que li na ficção. Em determinada passagem da estória um dos personagens, indo para os ensaios do Carnaval, torce para que não haja chuva durante o desfile, o que continua acontecendo até hoje. O fato me chamou a atenção, mas como é um fenômeno da natureza e envolve a maior festa popular no país é natural que a torcida por dias e noites sem chuva tenha sido sempre uma constante no decorrer do tempo e hoje seja ainda cada vez maior, tendo em vista o trabalho desenvolvido para a beleza do espetáculo, cada vez mais grandioso.
                        Outro fato, no entanto, me fez refletir. Em outra passagem um personagem a procura de um lugar para morar lê o seguinte anúncio em um dos jornais da época: “Aluga-se, a senhor distinto, quarto de frente, mobiliado, com pensão, em casa de família mineira. Todo o conforto, não falta água e tem telefone. Avenida Passos, 34”. No mesmo dia, coincidentemente, assisti em um dos telejornais local, uma matéria sobre os moradores do Morro do Andaraí onde estes, ainda hoje, não dispõem de nenhum serviço de saneamento. As pessoas deixam de comprar alimentos para comprarem os galões de água. Há um poço em determinado ponto onde é possível se retirar uma média de 30 baldes de água por dia (para 50 famílias que moram próximas), com o agravante de que ao lado do poço há um córrego, completamente poluído. Um dos moradores conseguiu encanar água diretamente de uma pequena nascente e convive, diariamente, com a fila de baldes dos vizinhos. Dona Maria tem 76 anos, há mais de 40 anos mora no Morro do Andaraí, quando criança buscava água na mata, atualmente usando bengala para se locomover, se vê obrigada a comprar água, comprando, em média, 63 galões de água por mês, deixando, ás vezes, de comprar os remédios de que precisa.
                        Na Pavuna, há três anos, baldes e mangueiras fazem parte da rotina dos moradores. Se fosse citar todos os locais onde se encontra este tipo de problema nas comunidades do Rio, daria para escrever um compêndio. E o governo, ironicamente, dispõe de um programa para este fim, o Programa Água para Todos!
                        Uma cidade de contrastes. É assim que o Rio é comumente descrito, geralmente pelo fato de se ver bem ao lado de um edifício de luxo uma favela. Para os que passam brevemente por aqui é essa a idéia que se tem. O que não se fica sabendo é que estes contrastes vão muito além desta visão. Há problemas crônicos que acho que nunca serão solucionados, como a corrupção, o tráfico, a violência e o descaso das autoridades (leia-se políticos e membros que compõem os departamentos de segurança) com o povo.
                        Esta questão do saneamento básico nas comunidades carentes é apenas um dos problemas. Citei o mesmo por constatar que da década de 30 aos dias atuais o problema continua sem solução. Há muitos outros tão ou mais graves que este. Querem conferir? Acessem o portal da Globo (g1.com), no segmento telejornais regionais, principalmente no RJ 1ª Edição. Como é um telejornal que vai ao ar às 11:00h, horário em que a maior parte das pessoas estão trabalhando, só é visto por uma minoria. Noventa por cento da pauta do telejornal registra estes descasos da administração pública com os desvalidos.
                        Se o Jô fosse escrever um livro tendo como pano de fundo os dias atuais, nesta mesma cidade, não iria precisar de muita pesquisa para desenhar o cenário, bastariam 20 minutos diários na frente dos telejornais regionais para constatar que da época em que se passa a estória dAs Esganadas aos dias atuais os problemas só aumentaram e os já existentes só pioraram.
                        Do Estado Novo à Democracia, os políticos só foram perdendo qualidade e tornado-se cada vez mais corruptos e centrados no enriquecimento pessoal que é compartilhado com os poucos que lhes são cúmplices. O povo que se dane. Obras de melhoramentos e assistência a estes desvalidos devem apenas ser inauguradas para a liberação das verbas, que serão desviadas. E as obras que fiquem lá, inacabadas, de governo para governo, sucessivamente. Novos programas de governo como o Água para Todos são lançados a cada novo governo para a captação de recursos, que nunca são aplicados como deveriam e sempre desviados. Finda o governo, finda o programa sem nada ter sido feito. Vem um novo governo e um novo programa e por aí vai, pleito após pleito.
                        Vamos dar ao povo Futebol e Carnaval que ele vai continuar feliz e alienado, nos deixando em paz para governarmos em proveito próprio.

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